quarta-feira, 12 de novembro de 2008

foto luliX pandaglia Série Noturnos



O Eu Dividido
Estudo existencial da sanidade e da loucura
De Ronald D. Laing

Resenha de Luciana Bouças Dau


1. Introdução

O Eu Dividido – Estudo existencial da sanidade e da loucura ( 1960 ), de Ronald David Laing é um livro que modifica o nosso olhar e atitudes em relação à loucura e principalmente à compreensão do ser esquizóide e esquizofrênico.
Ele rompe com os velhos jargões da psiquiatria clássica, assim como os da psicanálise. Questiona o vocabulário técnico dizendo que servem para isolar ainda mais o doente. Essas terminologias se referem ao homem como um organismo isolado e não uma pessoa relacionada essencialmente com o outro e com o mundo. Afirma de forma contundente que tanto a psiquiatria quanto a psicanálise não conseguiram compreender um único esquizofrênico.
Influenciado pela filosofia, Laing propõe uma linguagem fenomenológica existencial, para explicar o processo de enlouquecimento. Mas, foi principalmente com sua sensibilidade, intuição e apurado senso de observação que ele pode de fato ter acesso a esse universo hermeticamente fechado.
Diz que o comportamento do esquizofrênico pode ser visto de duas formas: como sintoma de uma doença ou como a expressão de sua existência. Sua tese se baseia na compreensão e verdade existencial do indivíduo. Essa ciência tem a tarefa de articular o que é o mundo do outro e a sua maneira de nele se encontrar. Diz que precisamos olhar essa pessoa do ponto de vista do seu mundo e não dentro de nosso próprio sistema de referências.
Declara que ninguém sofre de esquizofrenia. “A pessoa é esquizofrênica. O esquizofrênico precisa ser conhecido sem ser destruído. Devemos reconhecer o tempo todo sua singularidade e diferença, sua separação, solidão e desespero.”
Esse livro continua sendo ousado, pelas duras críticas e por apresentar “uma ciência da pessoa baseada na construção existencial fenomenológica que é uma dedução da maneira como o outro está sentindo e agindo”.
É extremamente interessante e original a forma como ele nos conduz a esse universo existencial. Através de sua narrativa e das falas de alguns pacientes, Laing proporciona um mergulho profundo no mundo esquizóide e esquizofrênico: no eu dividido.

2. Desenvolvimento

O livro é dividido didaticamente em três partes. Na primeira, Laing expõe os fundamentos existenciais e psicológicos da pessoa. Diz que só é possível entender a evolução da psicose a partir da compreensão de uma posição básica existencial de insegurança ontológica.
Define o ser do ponto de vista da segurança ontológica, “como uma pessoa que tem um entendimento de sua presença no mundo como uma pessoa, viva, completa e, no sentido temporal, contínua.” Capaz de viver no mundo e se relacionar com os outros, considerando- os reais, vivos, completos e contínuos. Pessoas aptas à enfrentarem os desafios da vida.
A insegurança ontológica primária se caracteriza pela perda do senso de realidade. “O indivíduo poderá sentir- se mais irreal do que real, literalmente falando, mais morto do que vivo; precariamente diferenciado do restante do mundo, de modo que sua identidade e autonomia estejam sempre postas em dúvida.” Uma pessoa assim, provavelmente se sente sem consistência, sem substância, com o eu separado do corpo, dividido. Incapaz de se aceitar como uma pessoa boa, pura, com valor. Se sente culpada, sem direito à vida.
“Como pode uma pessoa assim tão insegura, viver num mundo “seguro”? Esse indivíduo, para ele, vive tentando preservar sua identidade para impedir a perda do seu self. Se isola, e passa “a viver em seu mundo”. Não consegue compartilhar com os outros.
Caracteriza três formas de ansiedade enfrentadas pela pessoa ontologicamente insegura: absorção, implosão e petrificação.
Na absorção a pessoa tem medo de qualquer relacionamento com qualquer outra pessoa ou coisa e até de si mesmo, com medo da perda de sua autonomia e identidade. “A principal manobra usada para preservar a identidade sob pressão do temor da absorção é o isolamento.” Esse indivíduo receia ser envolvido, amado e engolido. Por isso, para ele odiar seja mais fácil do que amar.
Qualquer contato com a realidade é sentido por ele como uma terrível ameaça. Se sente vazio, apesar de desejar ser preenchido. Na implosão ele sente um pavor de que as coisas da vida entrem nele e destruam sua identidade. É exatamente esse medo de ser preenchido que o afasta do mundo.
A terceira forma de ansiedade é a petrificação e despersonalização. Na petrificação a pessoa sente o terror de se transformar em pedra. Medo de se transformar ou ser transformada, de passar de pessoa viva em algo morto, de ser um “objeto sem subjetividade”.
A “Despersonalização é uma técnica universalmente utilizada como meio de lidar com o outro quando ele se torna demasiado cansativo ou perturbador.” Mas, a pessoa ontologicamente insegura se sente despersonalizada e despersonaliza os outros.
Laing define na segunda parte do livro conceitos importantes como: o self encarnado e desencarnado, o self interior na condição esquizóide, o sistema de falso self, autoconsciência ( self- conciousness ) e finaliza apresentando o caso de Peter.
Na terceira e última parte, ele demonstra através de alguns casos a evolução psicótica, o self e o falso self no esquizofrênico e um estudo da esquizofrenia crônica intitulado “O fantasma do jardim abandonado”.
Para o autor, existe um ponto de partida na transição da sanidade para a loucura que se caracteriza por uma “forma particular de posição esquizóide existencial”. Uma pessoa com o self nessa posição não consegue se relacionar com os outros e com o mundo. Teme perder sua identidade e autonomia. Se isola do relacionamento direto com os outros para se proteger e proteger o mundo de suas insistentes ameaças, voltando- se para si mesma. Outras funções desse self são a fantasia e a observação.
O self esquizóide vai sofrendo sérias transformações, se tornando cada vez mais fantasiado, volatizado, irreal, dividido, vazio, pobre, morto, assim como, cheio de ódio, medo e inveja. Passa a ser qualquer pessoa na fantasia e ninguém na realidade. Tudo passa a ser possível. Cita o caso de James, um rapaz de 28 anos que acreditava ser alguém especial, com poderes sobrenaturais, uma reencarnação de Buda ou Cristo.
O relacionamento dessa pessoa com os outros e o mundo é feito através do sistema de falso self. Ele se apropria do conceito de falso self de Winnicott e desenvolve toda a sua teoria. Laing afirma que é somente através desse sistema que se pode explicar à psicose.
O falso self para uma pessoa ontologicamente segura é uma forma de defesa, uma máscara. O self e o corpo estão unidos, mas para a pessoa esquizóide eles estão separados. O corpo foi delegado ao sistema de falso self, e é através desse sistema que ele se relaciona com as pessoas e a vida. Esse indivíduo se sente como um mentiroso, um ator. Muitas vezes, ele representa um papel que ele acha que os outros querem que ele desempenhe.
Uma pessoa que consegue preservar o sistema de falso self, pode conservar uma aparência normal e por detrás, pode estar se processando uma psicose. “Esse ajuste aparentemente normal e bem sucedido é concebido pelo seu verdadeiro self como um fingimento cada vez mais vergonhoso e/ ou ridículo.” Cita dois casos de pessoas que pareciam normais e um dia repentinamente “surtaram”.

3. Conclusão

É fundamental que o terapeuta se despoje de todos os conceitos e pré- conceitos a respeito da psicose e procure embarcar nessa “viagem ao centro da loucura” sem perder à sua sanidade. Laing acredita que todo ser humano possui um núcleo psicótico. E que nem toda pessoa esquizóide é doente. Existe uma forma sadia de ser esquizóide.
A tarefa do terapeuta é tentar fazer contato com o self original, “trazendo- o de volta a uma vida praticável”. O amor do médico é fundamental nessa relação. Um amor capaz de aceitar o outro sem qualquer limitação. Laing cita uma declaração de Jung de que o esquizofrênico deixa de sê- lo quando encontra alguém que o compreende.
Escolhe o caso de Joan, registrado por dois psiquiatra americanos para confirmar surpreendentemente suas idéias sobre à psicose.
Joan: “Ser louco é como um desses pesadelos em que você tenta gritar por socorro e nenhum som sai da boca. Ou, se consegue chamar, ninguém ouve ou compreende. Não se pode despertar do pesadelo, a menos que alguém escute e o ajude a acordar.”
“O esquizofrênico, portanto, precisa fazer três coisas ao mesmo tempo: tentar chegar ao seio, mas também tentar morrer, enquanto uma terceira parte dele procura não morrer.”
Transcreverei também a fala de Rose, paciente de Laing que descreve de forma impressionante o que é ser esquizofrênico: “As idéias continuam e eu estou me afundando. Meu verdadeiro self mergulhou – costumava ficar no meu pescoço, mas agora desceu mais para baixo. Estou me perdendo a mim mesma. Ele está mergulhando cada vez mais. Quero falar- lhe, mas tenho medo. Minha cabeça está cheia de pensamentos, temores, ódios, ciúmes. Não posso dominá- los todos. Não posso agarrar- me a eles. Estou por detrás do meu nariz – isto é, meu consciente encontra- se alí. Estão rachando a minha cabeça ao meio – isso é esquizofrênico, não é? Não sabem se tenho ou não esses pensamentos. Creio que eu os imaginei na última vez, a fim de ser tratada. Ah, se conseguisse gostar e amar novamente, em vez de odiar. Gostaria de gostar das pessoas, mas quero odiá- las. Estou matando a mim mesma também.”
Laing, através desses e outros depoimentos, nos envolve de tal maneira que passamos a sentir e compreender o esquizofrênico. Cria uma teoria fantástica, confirmando- a na prática clínica. Proporciona uma leitura acessível à pessoa comum e especializada. Revela extraordinariamente o desespero e a solidão impostos por essa condição do ser. Como se essas pessoas vivessem num “eterno filme de terror”. Esse livro representa uma “Luz no fim do túnel”.

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